Eugénio de Andrade Lisboa
(Dagoberto Silva)
Carlos Matos Gomes Em busca do pai do D. Quixote
Anda uma equipa de arqueólogos espanhóis a tentar identificar os ossos de Cervantes na cripta do convento das trinitárias de Madrid, onde estarão misturados com os de muitos outros seres humanos. É uma estranha tarefa. Gastamos dinheiro e energias na impossível e inútil tarefa de reparar uma injustiça secular em vez de investirmos em evitar as do presente. Muito mais importante que a descoberta dos ossos do «manco do Lepanto» é o texto de José Manuel Caballero Bonald, Premio de Literatura Miguel de Cervantes 2012, publicado no dia 14 de Fevereiro no El País e que eu traduzi o melhor que pude. Importante seria encontramos muitos D. Quixotes, porque moinhos, salteadores, corruptos, prepotentes, hipócritas há por aí muitos:
“Andou sempre a escapar de qualquer coisa: da justiça, da falta de amor, da penúria, do aborrecimento. Não fugia, ausentava-se, largava de um porto desagradável para atracar a outro igualmente pouco acolhedor. As etapas do infortúnio assinalavam um caminho que conduzia a uma inevitável derrota. Que o levava ao triste refúgio de vencido. Sofreu os males de guerras, cativeiros, descalabros e desdéns. A família desfeita, a vontade esgotada, o destino mutilado foram as únicas credenciais com que pretendeu chegar ao inalcançável. Nunca fez carreira em nenhuma confraria porque não era adepto da lisonja nem condescendeu com a iniquidade dos poderosos. Residiu de modo vulgar em cidades impensáveis e executou tarefas desprezíveis. Com pouca prosápia e enfatuamento, com muita humilhação, solicitou trabalhos vásrios, nunca concedidos. Defendeu os valores dos homens decentes e lutou contra os dos falsos, era amigo dos perseguidos e abominava os perseguidores. Um dia, cansado de privações, desiludido por não ter conseguido ser o que sonhara, regressou ao refúgio de onde partira como um combatente aquebrantado pela derrota. Publicou então, quase sexagenário, um livro que haveria de constituir até hoje uma das obras primas da literatura universal. Nem sequer se conhece o paradeiro dos seus ossos. Mesmo que um dia sejam encontrados, tal descoberta jamais remediará a obstinação da injustiça.”
Carlos Matos Gomes
Ethel Feldman
(ilustração de Adão Cruz)
Canção de Ninar
canta-me a musica que te embala os dias,
deixa que ela me invada e eu esqueça que existo,
mantêm-me quieta e silenciosa porque doi-me o corpo por dentro.
enquanto adormeço cansada, choro.
este não é mais o país que eu sonhei.
antes, abracei-te na multidão e o teu beijo despertou-me entre todos que amei.
dá-me um cravo vermelho, coloca-o junto ao coração.
semeia em cada corpo uma nova canção.
Retrato 3 por 4
no meu retrato
três por quatro
viajo ao passado
aquela sou eu
ainda criança
de copo na mão
na festa da escola
lembras desta?
teu corpo no meu
antes da despedida
tantas vezes partimos
quantas vezes beijei-te
e não fotografei?
na parede o retrato
emoldura o passado
nos meus lábios
um ar morno e doce
indica o presente
onde tudo acontece
enquanto respiro
Augusta Clara O ponto certo
(Adão Cruz)
A aranha viu a mosca na periferia da teia. Impassível, como sabemos que as aranhas ficam, não se preocupou.Tinha todo o tempo do…que a deixassem ter. Do seu castelo, bem no meio da teia, viu a mosca passear no caminho ardiloso dos fios quase invisíveis e virtuosamente tecidos onde gotículas luminosas de sol a encandeavam e atraíam.
Um sopro de aragem numa pata e seria sua. A aranha sabia. Não tinha que fazer nada.
Sem querer, também ela foi sábia.
Só prendemos as pessoas quando as deixamos. Mas tem que ser no ponto certo. Como o açúcar. O ponto certo do açúcar. O ponto exacto e perverso do açúcar. Nem mais nem menos um nano pó. Se não for assim, é a condição natural: ninguém fica com ninguém para sempre.
Nunca mais o teve. Mas nunca o perdeu.
O pé preso na teia não é remissível.
E assim ficaram, para sempre, com um amor indestrutível.
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